Olho as fotos da multidão reunida na orla do Guaíba no último final de semana, quando completei dois meses de quarentena, e penso que sou um idiota. Por que me privo dessa maravilha que é passear num domingo de sol à beira do rio? Então lembro de outras fotos, daqui e de mundo afora, de cemitérios e hospitais, de informes, estudos, estatísticas, relatos e casos já de gente próxima e aí penso que – bom, penso outra coisa.
Não desejo ofender ninguém. Quem sabe estão com a razão? Concedo a todos que ali estão amontoados, desprotegidos e sorridentes o pleno direito de argumentarem a seu favor. Gostaria de escutar, de caminhar até eles e perguntar de onde tiram tanto desprendimento para prosseguir como se nada dramático estivesse acontecendo no mundo. Mas não tenho como retornar até o lugar e o momento, não tenho como sair de casa e fazer essa pergunta, apenas imagino.
Imagino que vejam, antes de tudo, como uma decisão individual na qual ninguém mais deva se intrometer. Problema meu, não abro mão do meu passeio e fim. Talvez também sintam-se imunes: sou jovem, sou atleta, não vou me contaminar nem adoecer. É certo que se justificam mutuamente, todo mundo está indo, por que eu vou ficar em casa? E quem sabe estejam mesmo desinformados da pandemia, crendo que é um vírus inócuo e passageiro que já está indo embora, perfeitamente administrável pelos sistemas de saúde.
Acontece que todas essas teses carecem de fundamento: a doença é altamente transmissível e estamos ainda abaixo do pico da contaminação à qual, aliás, todos estão sujeitos, em qualquer idade e condição física – e o sistema de saúde está neste exato momento à beira de total colapso. Acontece também que exatamente os mesmos equívocos são propagados pelo presidente da república e seus comparsas de genocídio no governo brasileiro, por mais que os números os contradigam, por mais que o resto da humanidade e da via láctea sustente e prove o contrário.
Posso então deduzir que a multidão serelepe das fotos, sorvendo um mate e se enturmando com toda tranquilidade, é feita de bons ouvintes, ou mais certamente de eleitores e seguidores do Bolsonaro. E que partilham com ele não apenas o descaso com a pandemia do coronavírus, mas a ânsia de destruir tudo que de socialmente positivo se conseguiu a muito custo encaminhar no país. E que, tal como sempre na triste história brasileira de golpes e caçadores de marajás, lá adiante vai sobrar para nós que levamos a pecha de esquerdalha – os que gentilmente nos confinamos em prol do coletivo, os que sempre alertamos, batalhamos e votamos por um estado de mínimo mal-estar social é que teremos um dia de juntar essa imensa merda que gente alegrinha e de coração leve como a Regina Duarte vai deixando pelo caminho.
Sem querer ofender ninguém, é aí que me sinto um completo idiota.